Prof.° Elisonaldo Câmara
- História em Foco
- Mossoró/Guamaré / Pedro Avelino, Rio Grande do Norte, Brazil
- Graduado em História pela UERN, Especialista em Geo-História, professor do município de Guamaré e do Estado do Rio Grande do Norte.
terça-feira, 8 de setembro de 2020
HISTÓRIA EM FOCO.: Operárias na Primeira Guerra Mundial.
Operárias na Primeira Guerra Mundial.
Fonte: Aventuras na História\Adaptação Elisonaldo Câmara. |
A primeira grande
guerra se estendeu de 1914 a 1918, inicialmente um conflito regionalizado no
continente europeu, depois se tornou um conflito de proporções mundiais. Com a
formação dos exércitos nacionais e o recrutamento em massa dos homens para o
campo de batalha, levou os homens em idade produtiva, também se precisou e
possibilitou em caráter de forma emergencial, que as mulheres ocupassem os
postos de trabalho masculinos nas fábricas e indústrias – onde eram produzidos
não apenas os serviços e produtos de necessidade básica que mantinham o
funcionamento das cidades, mas também a indústria bélica, que incluía os
artifícios bélicos, que incluía armamentos, munições e suprimentos para os
soldados. Sem a força de produção feminina, cujo desafio se tornou
transformando numa superação de preconceitos e discriminações e exemplo de
autoestima.
Muitos obstáculos
surgiram para as trabalhadoras além da força de trabalho na indústria as
demandas domesticas, incluindo a maternidade e a educação dos filhos, a união e
a solidariedade. Elas se uniam num
esforço coletivo e mútuo, se ajudavam, trabalhando em turnos alternativos para
fazerem o revezamento nos cuidados dentro de casa.
Muitas mulheres optaram por partilhar a mesma moradia,
facilitando a divisão das tarefas e também de custos. Os salários eram tão
baixos menos da metade do que era pago aos homens nas mesmas funções. As
condições de trabalho eram péssimas era
corriqueiro risco de vida, por falta de segurança, e jornada de trabalho de até
16 horas por dia, sofriam de assedio moral, sexual e violência física.
Apesar de todas as
condições adversas do ingresso das mulheres no mercado de trabalho fora de
casa, refletiam às vezes em alegria no rosto de muitas trabalhadoras uma
energia que surpreendia. Tendo em vista o contexto histórico foi importante
para fortalecer a luta das mulheres pela igualdade de direitos no mercado de
trabalho registrada nas décadas posteriores. Uma luta que perdura até os dias
de hoje.
quinta-feira, 3 de setembro de 2020
HISTÓRIA EM FOCO.: Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na ...
Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na Rua.
EMMANOEL ANTAS FILHO.
MOVIMENTO SOCIAL QUILOMBOLA E O DIREITO ACHADO NA RUA: UMA ANÁLISE DA
ORGANIZAÇÃO E LUTAS DO QUILOMBO AROEIRA EM PEDRO AVELINO-RN. Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título
de mestre em Serviço Social e Direitos Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Maria
Ivonete Soares Coelho; Coorientador: Prof. Dr. Lauro Gurgel de Brito, Mossoró,
2020, 142 p.
Dupla satisfação me
moveu participar da banca examinadora da Dissertação de Mestrado de Emmanoel
Antas Filho, objeto deste Lido para Você. De
um lado, ainda que virtualmente, em razão do distanciamento social a que obriga
a pandemia do Coronavírus, poder voltar a Mossoró,
agora na Universidade Estadual, depois de um ciclo rico em interlocução,
durante o programa interinstitucional de Doutorado que a minha universidade, a
UnB, entreteve com a UFERSA – a Universidade Federal Rural do Semiárido, para
qualificar uma turma de seus professores do curso de Direito.
De outro lado, até como
desdobramento daquela experiência que a rigor, ainda tem curso pois, em seguida
às defesas de teses que o programa ensejou com total aproveitamento, há
continuidade do diálogo que então se abriu, bastando ver a sua projeção nos
valiosos trabalhos que hoje circulam nos catálogos editoriais. Agora em agosto
mesmo foi publicado Neoliberalização da Justiça no Brasil:
Modo Governamental de Subjetivação, Dispositivo Jurisdicional de Exceção e a
Constituição como um Custo, de Thiago Arruda Queiroz Lima, pela
Editora Lumen Juris. Contribui para a obra com um prefácio e dela fiz
uma recensão na minha Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/neoliberalizacao-da-justica-no-brasil/).
Também, do professor Olavo
Hamilton Ayres Freire de Andrade, da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN), membro da Banca Examinadora, que
participou do programa com tese publicada em 2016 como livro, já referência, Princípio
da Proporcionalidade e Guerra Contra as Drogas, pela OWL, já em
terceira edição, com edição em inglês pela E-Book Kindle, Proportionality
and The War On Drugs: Why banning drugs is unconstitutional.
Incluo nesse rol
altamente representativo o Professor Lauro Gurgel de Brito, co-orientador
da Dissertação, docente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN), que cumpriu com brilho os requisitos do programa doutoral UnB/UFERSA, e
que participa como coautor, no volume que co-organizei para a Série
O Direito Achado na Rua, vol. 9: Introdução Crítica ao Direito
Urbanístico. Na obra, conferir em (https://estadodedireito.com.br/introducao-critica-ao-direito-urbanistico/),
tem relevo a importante contribuição do professor Gurgel
de Brito – Além do Protesto: Movimento Pau de
Arara Reivindica a Cidade, um tema desdobrado de sua tese, ela
própria, necessariamente, constante da bibliografia da Dissertação de Emmanoel
Antas Filho.
Exalta essa dupla
satisfação o valioso e enriquecedor debate proporcionado pelas colegas Mirla
Cisne Álvaro e Maria Ivonete Soares Coelho, da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), respectivamente,
examinadora e Orientadora da Dissertação.
Constato com uma nota de aprovação o cuidado que o Autor demonstra em fundamentar a sua Dissertação com dados relevantes de estudos locais e regionais. Seu co-orientador sabe, ao tempo em que acompanhei o projeto interinstitucional UnB/UFERSA, de doutoramento em Direito, o quanto valorizo e recomendo esse cuidado. Na ocasião, desenvolvendo o meu curso no projeto, fiz incidir na bibliografia autores potiguares, não só porque com isso carrego um tanto de ufanismo, mas porque há na bibliografia norte-riograndense de Direito, contribuições notáveis, entre tantos, Amaro Cavalcanti, Miguel Maria de Serpa Lopes, Miguel Seabra Fagundes e, para mim, em registro duplo, de ufanismo e reconhecimento, meu próprio e querido avô, Floriano Cavalcanti de Albuquerque, sobre o qual e para distingui-lo, escrevi um ensaio que fiz circular no Curso (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Depoimento. In ALBUQUERQUE, Marco Aurélio da Câmara Cavalcanti de. Desembargador Floriano Cavalcanti de Albuquerque e sua Brilhante Trajetória de Vida. Natal: Infinitaimagem, 1a. Edição, 2013). Em aditamento a esse depoimento, remeto à minha Coluna Lido para Você, no Jornal Estado de Direito, conforme https://estadodedireito.com.br/desembargador-floriano-cavalcanti-de-albuquerque-e-sua-brilhante-trajetoria-de-vida/ . Além disso, anoto, entre as opções do Autor, o para mim insuperável Luís da Câmara.
Cascudo.
Ponho em relevo entre esses estudos, sugerindo posterior incorporação ao seu
próprio texto, a excelente Dissertação defendida na UnB, em 2019, no Programa
de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, “Entre a Ocupação, a Certificação e a
Titularidade da Terra: a Luta pelo Direito à Terra da Comunidade Quilombola de
Macambira – RN” de autoria de Áurea Bezerra de Medeiros.
Nesse trabalho, sobre o
qual também escrevi uma Coluna Lido para Você (https://estadodedireito.com.br/entre-a-ocupacao-a-certificacao-e-a-titularidade-da-terra-a-luta-pelo-direito-a-terra-da-comunidade-quilombola-de-macambira-rn/), Áurea oferece
um sumário descritivo do campo que pretende abranger, abrindo com uma
introdução histórica, na qual recupera o percurso que vai da escravidão à
formação dos quilombos, para abrigar o sentido de reconhecimento dos
remanescentes dessas comunidades, a partir de julgamento do Supremo Tribunal
Federal, no marco da Constituição de 1988 e, tal como está no artigo 68 da
Disposições Transitórias, a designação de direitos das comunidades quilombolas.
Sob esse ângulo, ela analisa a decisão do STF sobre a constitucionalidade do
Artigo 68 da ADCT e do Decreto 4.887, tal como se deu no julgamento da Adin
3239.
Em seguida a autora
traça “a Longa e Tortuosa Trajetória Sofrida Pela Comunidade Quilombola de
Macambira – Detalhamento da Tensão entre a Justiça Estadual, a Federal e o
processo Administrativo no INCRA”. Assim ela descreve, com detalhes o Processo
na Justiça Estadual, a luta pela terra iniciada em 1997; a Apelação TJRN e Ação
de Execução Provisória na Justiça Estadual do RN; o enquadramento da questão na
Justiça Federal – Processo nº 0800076-72.2013.4.05.8402; o modo de designação
da Comunidade Quilombola Macambira no Processo Administrativo no INCRA;
finalizando com uma análise documental crítica desses processos judiciais e
administrativo.
No que é uma
singularidade do trabalho, a Autora, indica já no sumário, a sua importante
contribuição, para o conhecimento dessa realidade, pois penso que é o único
estudo que a focaliza e oferece um retrato da COMUNIDADE QUILOMBOLA DE
MACAMBIRA E SUA HISTÓRIA: o seu reconhecimento como comunidade quilombola; esse
reconhecimento pela Justiça Federal, no tocante ao seu direito as terras; e,
outra singularidade do estudo, a demonstração do conflito presente nesse
enquadramento no que designa como “A Comunidade Quilombola de Macambira, as
torres de energia eólica um acordo extrajudicial lesivo”.
O professor Menelick
de Carvalho Netto, que também participou no Programa Interinstitucional
em Mossoró e que orientou a dissertação de Áurea Medeiros, valoriza
conforme eu também o faço, a importância dos estudos de caso, valiosos na
configuração das singularidades, assim como em Barro Vermelho e Contente, no
Piauí, na pesquisa Rodrigo Portela Gomes cujo
trabalho acaba de ser indicado, juntamente com mais outros três, ao Prêmio UnB
de Dissertações e Teses 2018/2019, pela Faculdade de Direito da UnB.
Editado pela Lumen
Juris, com igual caraterística – estudo de caso – menciono o livro de Cássius
Dunck Dalosto (Políticas Públicas e os Direitos
Quilombolas no Brasil. O exemplo Kalunga, Rio de Janeiro, 2016, 243 p.).
Pesquisa originada do Programa de Direito Agrário da Universidade Federal de
Goiás, o livro insere no contexto da “história dos quilombos no Brasil”, a
experiência de resistência dos Kalungas (Estado de Goiás) e seu processo de
luta. É desse processo de luta que trata o livro, luta de resistência “contra
a violência perpetrada sobre as comunidades negras no Brasil na busca por
reconhecimento e por acesso aos bens e serviços oferecidos pelo Estado… para a
conquista por direitos e sua efetivação na realidade social por meio de
políticas públicas…”.
Ainda sobre o estudo de Áurea,
sobre o que possa interessar à pesquisa de Emmanoel Antas Filho, está
o apreender em ambos, uma realidade em processo, pondo em evidência o conjunto
de ameaças que pairam sobre o direito reivindicado. Para Áurea,
“no
caso da Comunidade (de Macambira), a garantia jurídica de seus direitos esteve
todo o tempo sendo tolhida, conseguir a efetivação deste direito tornou-se uma
luta desleal, observa-se o período que o processo ficou parado na primeira
instância sem ter prosseguimento, e o prazo que não foi concedido a Comunidade
para apresentar manifestação sobre o terceiro interessado que iria fazer parte
do processo”.
A dissertação, conforme
dispõe o seu resumo, aqui reproduzido para melhor apreensão dos leitores da Coluna
Lido para Você “tem o objetivo de analisar o processo
de lutas, de reconhecimento e conquistas dos direitos sociais do quilombo da
Aroeira, localizado no Município Pedro Avelino/RN, à luz da proposta teórica do
Direito Achado na Rua. Nesse sentido, foram investigadas a formação e a origem
da comunidade, identificados os interesses e os projetos em disputa pelo grupo,
tudo com uma atenção especial em relação às formas de organização, lutas e a
configuração como sujeito coletivo de direito e expressão do Direito Achado na
Rua. O processo metodológico da pesquisa constou de revisão de literatura sobre
as temáticas escravismo, quilombos, movimentos sociais, Direito Achado na Rua e
Sujeito Coletivo de Direitos. Ocorreu pesquisa documental junto ao INCRA, à
Prefeitura Municipal de Pedro Avelino, à Fundação Palmares e à Associação São
Francisco do Quilombo Aroeira, bem como em sites e jornais disponibilizados em
plataformas digitais quando as informações tratavam da temática ou dos atos do
quilombo. Os estudos relacionados à escravização, quilombos, movimentos sociais
e movimentos social quilombola fundamentaram-se em autores clássicos e
contemporâneos e a análise foi feita dentro de um contexto histórico e a sua
evolução traz diferentes posicionamentos, que contribuíram para apreciação e
construção dos resultados. A pesquisa apresenta o termo Movimento Social
Quilombola como Sujeito Coletivo de Direito e expressão do conceito de
Movimentos Sociais e sua articulação com o Direito Achado na Rua, como
materialização das conquistas e lutas do Quilombo Aroeira por Direitos Sociais.
Esse se constitui como propósito teórico da dissertação. Para essa articulação,
foi abordado o Direito dentro de um processo histórico que emerge da dialética
social, não como ordem ou lei, mas como legítima expressão da liberdade,
conforme propõe Roberto Lyra Filho, emanando do espaço público e
decorrendo dos movimentos sociais quando lutam por direitos sociais enquanto
sujeitos coletivos de direitos, tendo como referência empírica o quilombo da
Aroeira e seu processo de reconhecimento, entre os anos de 2006 a 2020. Os
achados da pesquisa apontam para a confirmação de que o processo de
reconhecimento e conquistas dos direitos sociais da comunidade quilombola da
Aroeira em Pedro Avelino-RN decorre da sua luta e organização enquanto sujeito
coletivo de direitos do movimento social quilombola, constituindo-se, portanto,
expressão do Direito Achado na Rua”.
Vale em sequência a
advertência do Autor de que o “viso do trabalho não é na linha de
abordagem do escravismo como folclore ou romantização escorada nos princípios
da revolução francesa, mas como símbolo de resistência e de lutas”.
Isso logo se verá a
partir do enquadramento interpelante da leitura crítica que o Autor oferece,
retirando do tema qualquer domesticação da crueza da luta por reconhecimento e
direitos e do sentido dramático da reivindicação não conformista, mas que que é
rebelde e contesta.
A advertência não é,
pois, graciosa, se entre nós, no Rio Grande do Norte principalmente, com os
registros folclóricos de narrativas a que nos acostumamos, um pouco românticas,
como em Cascudo, ou Gilberto
Freyre, edulcoradas num imaginário que oculta em
comportamentos bondosos a dureza de uma estrutura que
ultrapassa as biografias e mantêm intactas as condições de espoliação e de
opressão.
A narrativa de Emmanoel, escovando
a realidade a contrapelo, fez evocar em minhas memórias juvenis, as crônicas
que tantas vezes serviram de cortina para fazer penumbra a uma sociedade
patrimonialista, em arranjo decolonial, com os contornos de um legado
escravocrata, mesmo entre “bons” senhores de
escravos.
Lembrei-me das estórias
do Doutor
Loló, o avô da minha querida avó. Presidente da Província
no crepúsculo do século XIX, primeiro bacharel (Faculdade de Direito de
Olinda/Recife) do hoje Estado do Rio Grande do Norte, nascido em São Gonçalo e
Senhor de Engenho em Ceará Mirim. Há um registro genealógico feito por meu tio Marco
Aurélio da Câmara Cavalcanti de Albuquerque, já referido,
aqui em Moura
e Raposo da Câmara no Rio Grande do Norte. Ascendência & Descendência:
Colônia, Império, Regência e República (Natal: Infinitaimagem,
2012). O registro é singelo: Jerônimo Cabral Rapôso da Câmara, “conhecido
por Dr. Loló faleceu na cidade de São Gonçalo (RN),
a 24.05.1900 e, antes de fechar os olhos puxou, como de costume, a barba branca
para um lado, olhou para o seu filho Gabriel e falou: ‘Meu filho – Hoje é um
dia histórico e bom para se morrer, aniversário da Batalha de Tuiuti!’” (p.
109-110).
O registro não trouxe
outras reminiscências que ouvíamos à mesa patriarcal sobre o nosso ancestral Doutor
Loló: “Homem de alto poder na Província de
grande desapego e generosidade, se alguém em risco ou sob ameaça, tocasse um
espaço ou uma superfície qualquer de sua propriedade, bastava dizer ‘valei-me
Doutor Loló!!!’, e já ninguém ousava constranger ou ameaçar’” o
infeliz.
E, a estória mais
inspiradora. Proprietário de Engenho, senhor de escravos, dava mau exemplo com
a sua bondade, pois seus “negros” eram “maluvidos”. A
Vila queria uma atitude exemplar, Doutor Loló precisava
corrigir o comportamento. Ele aquiesceu, mandou reunir todos na praça na hora
da ave-maria e determinou ao feitor colocar dois pelourinhos no coreto. No
primeiro, um boneco de pano, em tamanho natural, no segundo o “cancão
de fogo”, o escravo mais “celebrento”. E mandou
dar 100 chibatadas…no boneco. E a cada golpe, dizia: ‘tá vendo negro, já pensou se isso
fosse em você?!”. Claro, não sabíamos então, que o máximo de
consciência possível, inscrita num temperamento bondoso não bastava para
superar, através da penumbra de rara misericórdia, a iniquidade da
estrutura escravocrata, que mantinha a alienação do humano própria do modo de
produção.
O estudo de Emmanoel
Antas Filho contribui para o fortalecimento de consciência,
de defesa e de apoio à causa quilombola em nosso País. Ele corrobora para
realizar aqueles objetivos que Vilma Francisco procurou
estabelecer ao preparar um manual de Direitos Humanos para Quilombolas (Coleção
Caminho das Pedras, vol. 1. Rio de Janeiro, 2006 – https://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-para-quilombolas/.
O Manual, uma iniciativa do PROAC – Projeto de Apoio a Comunidades de Quilombos
do Brasil, vinculado ao Instituto Brasileiro de Ação Popular – IbrAP, é fruto
de cuidadosa pesquisa e de redação original e sensível e tem a preocupação de
situar os direitos fundamentais e os direitos humanos ao alcance dos
quilombolas, por meio de uma linguagem que facilita o seu entendimento e as
suas condições de exercício.
Em sua tessitura
editorial, a obra, em razão de sua motivação e de seu alcance, não é uma tarefa
fácil, mas é uma tarefa urgente. Numa sociedade em que o racismo orienta
fortemente as disposições ideológicas desde o pós-abolição (SANTOS, Sales
Augusto dos. A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do Movimento
Negro, in Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº
10.639/03/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/MEC,
Brasília, 2005), assumir atitude, defesa ou firmar a consciência da
subjetividade aspirante a direitos iguais e plenos pelos excluídos da
cidadania, requer sentido de imediatidade e comprometimento histórico.
Trata-se, por isso
também, quando se cogita de um Manual de Direitos Humanos Quilombolas, de
procurar abrir a doutrina jurídica nacional, para a relevância desses direitos,
uma vez que “o
povo negro teve o seu direito mantido separado da ‘lei oficial’, elaborada e
mantida pelas oligarquias econômicas que estavam no poder” (SAULE
JR, Nelson, org., A situação dos direitos humanos das comunidades negras e
tradicionais de Alcântara, MA – Brasil. Relatório da Missão da Relatoria
Nacional do Direito à Moradia Adequada e à Terra Urbana. São Paulo, Instituto
Polis, 2003).
O Manual, vou continuar
chamando-o assim, carrega esta pretensão auspiciosa. Além de oferecer aos
próprios sujeitos membros das Comunidades Quilombolas o conhecimento que
emancipa, colocando o Direito e os meios para os exercer ao alcance de sua
capacidade de ação, quer ainda “despertar a consciência da sociedade
em geral no sentido de perceber a necessidade que se impõe para o respeito às
comunidades quilombolas. Não apenas pela importância simbólica de sua
existência concreta, mas pelo reconhecimento dos seus direitos já garantidos e
legitimados na Constituição e nos tratados internacionais”.
Para um País que se
construiu sobre bases escravistas, lembra Ivair Augusto Alves dos Santos (Ações
afirmativas: farol de expectativas, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al.,
org. Educando para os Direitos Humanos. Pautas Pedagógicas para a cidadania na
Universidade, Porto Alegre: Síntese, 2004), “mais de um século pós Abolição, não
foi capaz de elaborar um programa de promoção de igualdade ou um conjunto de
políticas sociais que contemplasse a questão das desigualdades raciais”.
O Manual aponta para
esse esforço de construir igualdade. Na medida em que abre o horizonte dos
direitos, opera com a expectativa da enorme disposição dos quilombos
contemporâneos para se fazerem sujeitos de sua própria inserção. Citando Glória
Moura, fonte na qual invariavelmente busco alimento para
qualificar minhas reflexões nesse tema, com um pequeno ajustamento de contexto
(O Direito à Diferença, in MUNANGA, Kabengele, org., Superando o racismo
na escola. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, Brasília, 2005), cuida-se de imagina-los “como
fator formador e recriador de identidade – para, através dos
direitos fazê-los – veículo de transmissão e
internalização de valores que possibilitam a afirmação e a expressão da
diferença/alteridade e, ao mesmo tempo, a negociação dos termos de inserção das
comunidades rurais negras na sociedade como um todo”.
Seu trabalho precede a
vertente acadêmica que se debruça sobre o tema e que começa a oferecer
reflexões valiosas para a afirmação dos direitos humanos das Comunidades
Quilombolas. É o caso da dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em
Direito da Faculdade de Direito da UnB), também sob minha orientação, de Emília
Joana Viana de Oliveira: Mulheres quilombolas na luta pelo
direito à água: uma reflexão a partir do conflito do Quilombo Rio dos Macacos –
BA.
No centro de sua
pesquisa se vai constatar a água como elemento central para a produção e
reprodução da vida humana, e, também para a manutenção do modo de vida da
Comunidade Quilombola de Rio dos Macacos-BA, pela identidade quilombola
pesqueira e agricultora no espaço rural. A dissertação apresenta a água como um
componente central na disputa pelo território no conflito com a Marinha do
Brasil, que executa uma gestão territorial de controle, proibição, violências e
restrição do acesso à água, com diversas violações de Direitos Humanos desde a
chegada da instituição no território onde já vivia a comunidade e se iniciaram
as atividades que envolvem o complexo da Base Naval de Aratu-BA na década de
1950.
A partir do conflito,
vê-se que a práxis de mulheres quilombolas para a manutenção do modo de vida
quilombola, que é atravessada pelo racismo e pelo sexismo, tem o papel anunciar
que o território também é água, na medida em que lutam para que o processo de
regularização fundiária quilombola no contexto de conflito com o Estado, por
meio de uma instituição militar, garanta também o acesso aos rios, fontes
sagradas e a possibilidade de uso da água de todas as formas necessárias para a
garantia do modo de vida quilombola.
A disputa
pela compreensão da água como parte do território e como um Direito
Fundamental, surge da percepção de mulheres negras nesse conflito e visa a
efetivação deste diante do Estado e se aplica a esse, mas também a tantos
outros conflitos fundiários no Brasil, marcados pelo racismo desde a
colonização, de modo que o olhar para a experiência quilombola, no passado e no
presente, evidencia um dos modos de disputa pelo acesso à terra da população
negra brasileira, como continuidade da Diáspora Africana. Ao mesmo tempo,
amplia a percepção do acesso a água como dinâmica essencial para a manutenção
dos modos de vida de acordo com as identidades e as territorialidades.
As comunidades
quilombolas surgem enquanto categoria que abre o reconhecimento jurídico a
partir da previsão normativa do art. 68 do ADCT da CF/88, inaugurando a
dogmática constitucional sobre os direitos dos povos quilombolas, considerando
estes reunidos em territórios coletivos, com a regularização fundiária prevista
no Decreto 4887/03, que prevê os procedimentos de identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação, recentemente declarado
constitucional pelo Supremo Tribunal Federal (Por maioria de votos, o Supremo
Tribunal Federal (STF) declarou a validade do Decreto 4.887/2003, garantindo,
com isso, a titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
quilombolas).
A Dissertação que
comento parte dessa ordem de posicionamento. Para o Autor o trabalho “tem
como tema O Movimento Social Quilombola e o Direito Achado na Rua: uma análise
da organização e lutas do Quilombo da Aroeira no Município de Pedro Avelino-RN,
buscando respostas para o problema que deu impulso inicial à pesquisa, que é
saber se o quilombo da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito
Achado na Rua. Nessa linha, tem-se como objetivo geral analisar se o quilombo
da Aroeira em Pedro Avelino-RN é expressão do Direito Achado na Rua, ponto este
que terá cada elemento dissecado nos capítulos do trabalho, ficando à cargo da
última parte, fazer a articulação entre o que se apreendeu da pesquisa
documental, os referenciais teóricos abordados e o quilombo objeto do estudo”.
Insere-se na motivação
do Autor “pesquisar
sobre O Direito Achado na Rua, trabalhando-o não como ordem, mas como “legítima
expressão da liberdade” (LYRA FILHO, 1982), analisando seus elementos e a
relação com as lutas dos movimentos sociais, valendo-se de posicionamentos
doutrinários que tratam das formas de efetivas conquistas de Direitos Humanos,
com significativa importância dada às contribuições dos Movimentos Sociais e do
Direito Achado na Rua como um instrumento de lutas e vitórias”.
Quer o Autor compreender
o do sujeito
coletivo de direito, categoria fundante do campo
teórico-epistemológico de O Direito Achado na Rua e analisar a sua formação e o
seu papel dentro do contexto histórico, de constituição da comunidade
quilombola, espaço no qual se forma a subjetividade ativa e instituinte de
direitos.
O processo de titulação
da terra correspondente ao território do quilombo, que tramita junto ao INCRA,
possui cadastro de todas as famílias até 2013, o Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação (RTID), composto pelo estudo antropológico com
entrevistas, fotografias, dados, árvore genealógica, relatos e mapas. Começou a
tramitar no ano de 2006 e até julho de 2020 encontrava-se com o relatório
concluído e pendente de andamento.
Com esse aporte empírico
possível quer o Autor “fazer a subsunção das categorias
descritas na parte teórica do trabalho para explicar como a comunidade se
enquadra e se identifica como expressão do Direito Achado na Rua, tomando por
base suas ações e conquistas no espaço público, enquanto sujeito coletivo e
movimento social quilombola” e, nesse passo, “trabalhado o conceito de Direito Achado
na Rua, passando pela sua concepção, objetivos e relevância dentro do contexto
social e político, fazendo a relação com o movimento social,
abordando o Movimento Social Quilombola, identificando-o e analisando-o como
Sujeito Coletivo de Direitos” .
Tomando o território do
quilombo não só como um espaço físico, “mas como lugar onde se tem depositado
suas tradições, seus costumes, onde se concentram e se conservam valores
étnicos, a linha de investigação percebe o quilombo, com uma ideia de nucleamento,
de associação solidária em relação a uma experiência intra e intergrupos, vendo
a territorialidade como uma fronteira construída a partir de um modelo
específico de segregação, mas que propicia condições de permanência de
continuidade das referências simbólicas importantes à consolidação do
imaginário coletivo”, o Autor pretende em suma, fazer a
articulação das categorias designadas no curso da pesquisa para “demonstrar
que o quilombo se configura como expressão do Direito Achado na Rua, por ser imanente
de práticas libertadoras do sujeito coletivo na luta por direitos que emergem
do espaço público, como legítima expressão da liberdade”.
Terá alcançado seu
intento?
Ora, o Autor opera com a
convicção colhida em sua pesquisa, de que “os Movimentos Sociais não precisam
pedir licença para lutar, tampouco para pautar as suas reivindicações políticas
na lei ou na autorização dos poderes constituídos. Por essas razões, o direito
que dessa organização se origina é puramente humano, democrático, na verdadeira
acepção da palavra”. E que a “sua luta que não cessa, mas, é através
do Direito Achado na Rua, com sua afirmação nas ações dos Movimentos Sociais,
que respira a liberdade e a participação política, como meio de criação de
verdadeiros direitos humanos e de uma democracia substantiva”.
Daí a relevância das
categorias de O Direito Achado na Rua,
que o Autor utiliza com pertinência e entendimento preciso, conforme se
constata no capítulo 2 da Dissertação, como um instrumento para dar sustentação
a essas relações com os Movimentos Sociais e suas lutas políticas, no alcance
dos direitos humanos. Com efeito, para o Autor, “o referencial teórico tratado no
presente fez constatar os movimentos sociais e o Direito Achado na Rua como
instrumentos de luta, molas propulsoras para aquisição de direitos humanos,
cidadania e democracia”.
A análise conceitual e histórica “mostrou que o quilombo deixou de ser
somente um aspecto negativo, ilícito e até criminoso, para, diante de uma ressemantização,
ser analisado por outros prismas, levando em conta aspectos sociológicos e
políticos que passaram a fundamentar as razões da reunião dos negros
descendentes de escravos e essa territorialidade que os ligam à terra vindicada”.
Assim, “foi
trazido um conceito de quilombo que envolve categorias como união, identidade
étnica, luta, preservação de valores, sujeito coletivo de direito, resistência
e territorialidade. Com essas categorias conceituais veio à baila uma nova
percepção de quilombo, com nova interlocução com a sociedade e com o aparato
estatal, que passa a se afigurar como o que se denomina de movimento social
quilombola”.
Nesta linha, foi
possível abordar, através das fundamentações teóricas, o Movimento Quilombola
como um Novo Movimento Social, que transcende as discussões de classe, embora
não as exclua. A partir de elementos conceituais coligidos em sua revisão
bibliográfica, o Autor acaba por ressignificar o conceito, concluindo por
designar quilombos, ao menos para sulear sua abordagem na Dissertação, como “movimentos
por direitos e por reconhecimento dos quilombos como identidade étnica,
resistência, luta, preservação de valores; buscando que seja a eles assegurado
o território onde encontram-se fincadas suas raízes, bem como as conquistas
decorrentes das lutas do povo negro e da população quilombola como sujeito
coletivo” (p. 58).
A organização dessas
lutas e a identidade entre os sujeitos que se unem em torno de valores
históricos e étnicos, na busca por direitos, os fazem se identificar com
projetos convergentes para participar de ações coletivas, a fim de solucionar
suas demandas.
O Movimento Social
Quilombola está pautado num referencial coletivo, que baliza suas ações em
critérios subjetivos, identitários e comunitários de lutas, vendo o quilombo
como um fator de mobilização política, que faz com que esses sujeitos gerem uma
identidade entre si.
O Movimento Social
Quilombola ainda apresenta tímida participação no cenário nacional nesse campo
de lutas, mas cada dia vem se afigurando vetor de organização, ciente que o
retrocesso não pode ser uma opção palatável, o que levará a implementação de
estudos mais aprofundados.
Ainda segundo o Autor, “os
documentos consultados dão conta que o reconhecimento como quilombo e a
demarcação das terras em um processo moroso, assoberbado de exigências e
investigações jurídicas, sociais e antropológicas é tratado como mais um tópico
destes capítulos da resistência e lutas políticas do povo quilombola de Aroeira.
Observou-se que as normas que disciplinam o processo de reconhecimento,
demarcatório e de concessão do título da terra aos quilombos são objetos de
lutas e decorrem, também, das marcas deixadas por esses embates e
manifestações. Todavia, ficou claro que, não só no Rio Grande do Norte, mas em
todo o Brasil, esse processo de titulação e elaboração do Relatório Técnico de
Identificação e Demarcação (RTDI) são morosos e penosos, sendo o seu andamento
um desafio dos quilombos e dos Movimentos Socais Quilombolas, em razão da
destinação de poucos recursos financeiros, bem como a secundarização pelo
INCRA à política quilombola, a ausência de agenda com demandas comuns dos
quilombos, além da fragmentação das organizações associativas das comunidades”.
O estudo constata que “no
quilombo Aroeira que as conquistas são contínuas, dentre as quais o acesso à
políticas públicas e infraestrutura, como a sede própria para a associação e um
açude para abastecimento de água para a comunidade, que decorreu da compensação
pela instalação de linhas de energia eólica construídas no território do
quilombo, melhorando a vida da localidade. O Aroeira é um quilombo de pessoas
sofridas, tradicionalmente abandonadas pelo poder estatal. Resistir mais de um
século nessa situação mostra a garra que possuem os quilombolas lá fincados. Há
pouco mais de uma década passos significativos passaram a ser dados como única
saída de quem grita por direitos e percebeu que, para galgar espaços, é preciso
uma articulação diferenciada através da organização enquanto, como a Associação
São Francisco. Registre-se que não se pode esperar simplesmente da lei a
resposta para essas necessidades, bastando lembrar que a escravidão tinha todo
amparo do Estado e da legislação da época, como se evidenciou dos referenciais
teóricos utilizados. Todavia, perceba-se que para o êxito dessas
reivindicações, especialmente quando se luta por direitos humanos, democracia e
cidadania, é fundamental que se dê de forma não segmentada, unindo forças dos
movimentos sociais contra toda a estrutura de dominação, vindicando ter em mãos
o efetivo poder político”.
E mais, diz o Autor: “No
quilombo Aroeira, em Pedro Avelino-RN, a luta por direitos sociais, dentre os
quais os títulos da terra, adicionados especialmente a luta por água potável,
moradia e saneamento básico, está em plena efervescência e sua atuação como
sujeito coletivo de direitos tem fundamental papel no processo de
reconhecimento e conquistas desses direitos. Nessa perspectiva, é
importante ter em mente, e isso já se apresenta claro para os quilombo da
Aroeira, que a conquista da demarcação do território é apenas um passo, sendo
fundamental que se implementem as políticas subsequentes de reforma agrária e
infraestrutura que concebam a qualidade de vida como consequência dos direitos
conferidos”.
Para além de meus
próprios escritos, os mais importantes e mais pertinentes inscritos no
referencial teórico da Dissertação, consinto que depois da completa e bem
posicionada formulação de Mauro Almeida Noleto (Subjetividade
Jurídica. A Titularidade de Direitos em Perspectiva Emancipatória. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998 – https://estadodedireito.com.br/subjetividade-juridica-a-titularidade-de-direitos-em-perspectiva-emancipatoria/),
o abalizado e mais recente estudo sobre a aplicação da categoria sujeito
coletivo de direito e as estratégias de enquadramento a
partir do marco epistemológico estabelecido em O Direito Achado na Rua, foram
bem configurados num texto ainda inédito – SUJEITO COLETIVO DE DIREITO E OS
NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: A LUTA POR DIREITOS DE ACESSO À TERRA E TERRITÓRIO –
de Clarissa
Machado de Azevedo Vaz e Renata Carolina Corrêa Vieira, produzido
para o Seminário Internacional O Direito Como Liberdade: 30 Anos de O Direito
Achado na Rua e que vai integrar o volume 10, da Série O Direito Achado na Rua:
Introdução Crítica ao Direito como Liberdade (no prelo).
Nesse texto as Autoras
revisitam o acervo teórico do tema para articular a questão dos Movimentos
Sociais e novos sujeitos: o Sujeito Coletivo de Direito e o Direito Achado na
Rua e, em diálogo com meus conceitos, acertam que “depois
de estabelecer as bases sociológicas e filosóficas do conceito, José Geraldo de
Sousa Junior conclui, portanto, a fundamentação teórica necessária para a
constituição da categoria jurídica “sujeito coletivo de direito”. Segundo o
autor, “a análise da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais,
que se exprime no exercício da cidadania ativa, designa uma prática social que
autoriza a estabelecer, em perspectiva jurídica, estas novas configurações,
tais como a determinação de espaços sociais a partir dos quais se enunciam
direitos novos, a constituição de novos processos sociais e de novos direitos e
a afirmação teórica do sujeito coletivo de direito”.
Para elas, assim como
para Emmanoel, “é
neste ponto, que se enquadra a teoria epistemológica de O Direito Achado na
Rua, expressão criada pelo professor Roberto Lyra Filho (1986). Ao reconhecer
esse espaço de cidadania ativa como uma experiência emancipatória, Lyra Filho
defende que o direito não pode ser compreendido como mera restrição, senão,
“enquanto enunciação dos princípios de uma legítima organização social da
liberdade”. O direito, portanto, se faz no processo histórico de
libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não
lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua
filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos
(isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores
padrões de liberdade em convivência), quanto produtos falsificados (isto é, a
negação do direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um
organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da
iniquidade, a pretexto da consagração do direito”.
Para as Autoras, é
somente nesse sentido que pode se orientar o trabalho político e teórico de O
Direito Achado na Rua em compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos
novos sujeitos sociais e, com base na análise das experiências populares de
criação do direito: 1. determinar o espaço político no qual se desenvolvem as
práticas sociais que enunciam direitos; 2. definir a natureza jurídica do
sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social
e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e 3.
enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direito e
estabelecer novas categorias jurídicas, que superem a condição de espoliação e
de opressão e estabeleça uma legítima organização social da liberdade.
A pesquisa também
evidenciou a questão identitária, étnico-racial de autodeclaração e orgulho da
sua condição de negro quilombola. É essa questão identitária que a luta do
quilombo como um sujeito coletivo ajuda a construir, como ocorre quando aqueles
que não residem mais na Aroeira se afirmam quilombolas, em razão de terem a
consciência que ali estão suas origens e que são parte daquela territorialidade
por se sentirem melhor protegidos nesse processo contínuo e histórico de lutas.
É possível afirmar,
consoante os achados da pesquisa, que no quilombo Aroeira a organização e o
fortalecimento das práticas de políticas associativas estão em franco
desenvolvimento e consolidação, demonstrando-se pela análise da documentação
com os referenciais teóricos, que são elas responsáveis, direta ou
indiretamente, pelas conquistas que decorrem das lutas como sujeito coletivo.
Nesse sentido – completa
o Autor – “consideramos
que os estudos realizados evidenciaram que a hipótese foi confirmada pelos
elementos destacados, no sentido de que as experiências do Quilombo Aroeira em
Pedro Avelino-RN se constituem expressão do Direito Achado na Rua. A
importância do estudo empírico realizado é poder utilizar as vozes do quilombo
Aroeira através dos documentos e outros estudos, analisando o lugar da fala dos
seus sujeitos e, também, por possibilitar tratar do movimento quilombola como
um movimento social responsável pelo surgimento do direito, onde nada havia
sido escrito ou pesquisado com um olhar dedicado as suas lutas e ao Direito
Achado na Rua, articulando, ainda, dois campos de conhecimento: o Serviço
Social e o Direito”.
As Autoras, assim também Emmanoel,
procuraram estabelecer reflexões sobre a categoria jurídica do “sujeito
coletivo de direito” e sua relação com os novos movimentos sociais, na busca
por direitos, em especial direito à terra e território, e a sua concretização
na criação de novos direitos, revelando, ao fim, a atualidade da categoria
jurídica “sujeito coletivo de direito” após os seus trinta anos de concepção.
Nessa observação,
extraída do texto de Clarissa Machado e Renata Vieira, coloca-se
uma necessária ordem de indagações ao Autor, na perspectiva da dupla confiança
que a análise precisa carregar: política e epistemológica. Em tempos agônicos,
de travessia entre mundos em transição, pelo esgarçamento dos modos de produção
da existência e sua incapacidade de suprir dando equivalência as exigências de
necessidade e de liberdade; de fracasso político para mediar as crises dessa
travessia, nas tensões entre democracia e exceção; na disputa pelo futuro, nas
condições pós-pandemia; o que significa fazer tese nesse contexto e que pode
fazer o social organizado, a partir dos sujeitos coletivos de direito inscritos
nos Movimentos Sociais?
Se nos Movimentos
Sociais as identidades são móveis, variam segundo a conjuntura, como diz o Autor,
na travessia corrente pode-se falar em regresso ou em avanço? Os Movimentos
Sociais e os Sujeitos neles inscritos, estão se desmantelando em derrotas ou se
reorganizam para reorientar seus projetos e suas formas de luta?
No Brasil, depois de 2016,
com o afastamento de uma governança e seu projeto de sociedade, numa
instrumentalização cada vez mais reconhecida do jurídico, há ainda espaço para
o Direito, na sua dimensão de “dignidade jurídica da política”,
para o reconhecimento dos projetos institucionais-constitucionais no desenho
dos Movimentos Sociais, na modelagem emancipatória de O Direito Achado na Rua?
Para Clarissa
Machado e Renata Vieira, aliás, minhas orientandas, que pensam
como eu penso, como está assentado em nossas discussões e em trabalhos
co-autorais, apesar da conjuntura política, social e econômica
vivenciadas, com uma escalada de retrocesso de direitos e uma ameaça à
integridade constitucional-democrática, o “campo prático-conceitual sustentado
por José Geraldo de Sousa Junior, que vê nas formas de mobilização
e organizações populares, especialmente quando organizadas em movimentos
sociais, a emergência de atores e contradições sociais capazes de criar
direitos nas suas dinâmicas de afirmação de necessidades não satisfeitas, ao
relembrar historicamente das lutas e conquistas que os sujeitos coletivos de
direitos construíram ao longo da história, principalmente no período de
redemocratização do país, após analisar os avanços em suas conquistas, chega ao
atual momento de crise, no qual observa-se a reorganização desses
sujeitos coletivos”.
“As pessoas”, e eu
acrescento, assim como os seus movimentos, como diz John
Steinbeck, Prêmio Nobel de Literatura (A
Rua das Ilusões Perdidas, tradução brasileira do original
norte-americano Cannery Row. Rio de Janeiro: BestBolso,
2019, ninguém pode prever como saem das crises: “É que existem duas reações possíveis
ao ostracismo social: ou um homem emerge determinado a ser melhor, mais puro e
generoso ou desanda para o mal, desafia o mundo e faz coisas ainda piores”.
A segunda, afirma Steinbeck,
“é a reação mais comum ao estigma social”, tão
nitidamente identificada na conduta daqueles que deveriam encarnar a retidão de
proto-homens, uma vez erigidos à condição de governança mas que
indisfarçadamente regridem da posição de guias da comunidade.
Na primeira, os sujeitos
coletivos inscritos em movimentos sociais que se recompõem em face da crise.
Que se reorganizam. Uma reorganização não porque estavam desorganizados, mas
porque se reinventam nas formas de protestos, unificam pautas e sujeitos,
demonstrando a clareza da consciência do que estão enfrentando, focados na
resistência, mas construindo, para o futuro (com as reservas utópicas de
emancipação), orientadas por um conhecimento que traduza as possibilidades
plurais que provenham, diz Boaventura de Sousa Santos, das
“práticas
políticas que estão nas ruas, nas lutas e que contribuam decisivamente para a
construção de um mundo melhor” (Na Oficina do Sociólogo Artesão: aulas
2011-2016. Seleção, revisão e dição Maria
Paula Menezes, Carolina Peixoto. São Paulo: Cortez, 2018),
até consumar-se como “legítima organização social da
liberdade” (LYRA FILHO).
Por fim, vencidas as
questões que proponho, entendo com o autor da Dissertação, ser possível sim
afirmar que o Quilombo Aroeira é, uma expressão de
realização daqueles fundamentos que configuram o estatuto
político-epistemológico de O Direito Achado na Rua. Do
mesmo modo que toda a Banca Examinadora que lhe concedeu a aprovação
com louvor, com indicação de publicação, por ter trazido a
relevância de um tema tão importante para a análise acadêmica e pelo
ineditismo, no Programa de Pós-Graduação em que a Dissertação se desenvolveu,
de uma abordagem apta para o interpretar, inscrita nas categorias do campo
teórico de O Direito Achado na Rua.